domingo, 15 de fevereiro de 2009

"Elogio do Subúrbio"




27/02/08



"Cresci nos subúrbios de Lisboa, em Benfica, então quintinhas, travessas, casas baixas, a ouvir as mães chamarem ao crepúsculo - Vííííííííítor, num grito que, partido da Rua Ernesto da Silva, alcançava as cegonhas no cume das árvores mais altas e afogava os pavões no lago sob os álamos. Cresci junto ao castelito das Portas que nos separava da Venda Nova e da Estrada Militar, num país cujos postos fronteiriços eram a drogaria do senhor Jardim, a mercearia do Careca, a pastelaria do senhor Madureira e a capelista Havaneza do senhor Silvino, e demorava-me à tarde na oficina de sapateiro do senhor Florindo, a bater sola num cubículo escuro rodeado de cegos sentados em banquinhos baixos, envoltos no cheiro de cabedal e miséria que se mantém como o único odor de santidade que conheço.
A dona Maria Salgado, pequenina, magra, sempre de luto, transportava a Sagrada Família, numa caixa de vivenda em vivenda, e os meus avós recebiam na sala durante quinze dias essas três figuras de barro numa redoma embaciada que as criadas iluminavam de pavios de azeite.
Cresci entre o senhor Paulo que consertava com guitas e caniços as asas dos pardais, e os Ferro-O-Bico cuja tia fugiu com um cigano e lia a sina nas praias, embuçada de negro como a viúva de um marujo que nunca deu à costa.
Os meus amigos tinham nomes próprios tremendos (Lafaiete, Jaurés) e habitavam rés-do-chão de janelas ao nível da calçada onde se distinguiam aparelhos de rádio gigantescos, vasos de manjerico e madrinhas de chinelos. O cão da fábrica de curtumes acendia latidos fosforescentes nas noites de Julho, quando o pólen da acácia me chovia nas pálpebras, eu, morto de amores pela mulher do Sandokan, descobria-me unicórnio trancado na retrete da escola, e o brigadeiro Maia, de boina basca, descia à Adega dos Ossos a gesticular contra o regime.
Na época em que aos treze anos me estreei no hóquei em patins do Futebol Benfica, o guarda-redes enchumaçado como um barão medieval apontou-me ao pasmo dos colegas - O pai do ruço é doutorno que constituiu de imediato a minha primeira glória desportiva e a primeira tenebrosa responsabilidade, a partir do momento em que o treinador, a apalpar-me os músculos com os olhos, preveniu numa careta de dúvida - Sempre estou para ver se lhes chegas ó ruço que o teu pai no ringue era lixado para a porrada.
O dono da Farmácia União jogava o pau, a esposa do proprietário da Farmácia Marques era uma grega sumptuosa de nádegas de ânfora e pupilas acesas, que me fazia esquecer a mulher do Sandokan ao vê-la aos domingos a caminho da igreja, o sineiro a quem chamavam Zé Martelo e que tocava o Papagaio Loiro na Elevação da missa do meio-dia em vez do A treze de Maio obrigatório, possuía uma agência funerária cujo prospecto-reclame começava «Para que teima Vossa Excelência em viver se por cem escudos pode ter um lindo funeral?», e eu escrevia versos no intervalo do hóquei, fumava às escondidas, uma das minhas extremidades tocava o Jesus Correia e a outra Camões, e era indecentemente feliz.

Hoje, se vou a Benfica não encontro Benfica.
Os pavões calaram-se, nenhuma cegonha na palmeira dos Correios (já não existe a palmeira dos Correios, a quinta dos Lobo Antunes foi vendida) o senhor Silvino, o senhor Florindo e o senhor Jardim morreram, ergueram prédios no lugar das casas, mas eu suspeito que por baixo destes edifícios de cinco e seis e sete e oito e nove andares, num ponto qualquer sob as marquises e sucursais de banco, o senhor Paulo ainda conserta, com guitas e caniços, as asas dos pardais, a dona Maria Salgado ainda trota de vivenda em vivenda com a Sagrada Família na sua redoma embaciada, o Lafaiete e o Jaurés jogam ao virinhas na Calçada do Tojal cercados de vasos de manjerico e madrinhas de chinelos.
Não há pavões nem cegonhas e contudo a acácia dos meus pais, teimosa, resiste. Talvez que só a acácia resista, que só ela sobeje desse tempo como o mastro, furando as ondas, de um navio submerso. A acácia basta-me. Arrasaram as lojas e os pátios, não tocam o Papagaio Loiro no sino, mas a acácia resiste. Resiste. E sei que junto do seu tronco, se fechar os olhos e encostar a orelha ao seu tronco, hei-de ouvir a voz da minha mãe chamar- Antóóóóóóóónio e um miúdo ruço atravessará o quintal, com um saco de berlindes na algibeira, passará por mim sem me ver e sumir-se-á lá em cima no quarto, a sonhar que ao menos a mulher do Sandokan não o obrigaria nunca a comer puré de batata nem sopa de nabiças durante o tormento do jantar."



António Lobo Antunes, in "Crónicas".

8 comentários:

Anónimo disse...

O brigadeiro Maya é o meu bisavô materno!
Sempre gostei muito desta crónica...
Espero que este novo blog tenha vida longa e produtiva!
bj
m

Anónimo disse...

Muito obrigada, querida M.!

Bj gd

Anónimo disse...

Conheci dois rapazes Maya na minha adolescência.
Um era o "Manel"...o outro era o "Chico". Um deles veio parar à Suécia....o outro foi-se embora cedo de mais.

JA

Alexa disse...

Bem vindo aqui aos "Retalhos", Júlio! :)

Se a Marta aqui regressar (aos comentários), talvez, nos possa elucidar sobre qual o parentesco que tem com esses dois rapazes que o Júlio conheceu :)

Um abraço

Anónimo disse...

Como a Marta não regressou aqui,aos comentários, julgo que posso adiantar o tal grau de parentesco sem cometer nenhuma inconfidência. Quer o Xico, que vive na Suecia, quer o seu irmão Manuel, que já nos deixou, são netos do brigadeiro Maya, o tal da boina basca, e primos direitos da mãe da Marta.
Felicidades ao Blog.
ZM

Alexa disse...

ZM: bem-vindo aqui ao "Retalhos" e muito obrigada pelas suas palavras!
Espero que continue um visitante assíduo :)

Muito obrigada, também, pela clarificação sobre o grau de parentesco destes familiares da Marta :)

Um abraço

Fausto disse...

O dono da Farmácia União jogava o pau? O que é isto? Que raio de ideia! O sr. Manoel (com O) de Almeida e Sousa, o dono da Farmácia União não jogava o pau foi, sim, um grande campeão de Luta Greco-romana e, depois, treinador da mesma modalidade no Ginásio Clube Português! Vamos lá, dar o seu a seu dono!

fausto castelhano disse...

Correcção importante a fazer: A tal "grega sumptuosa de nádegas de ânfora e pupilas acesas" como é referida no texto, a Srª D. Germana não era a esposa do proprietário da Farmácia Marques, o Dr. Marques. A Srª D. Germana (ainda é viva e de boa saúde) era a esposa do filho do Dr. Marques, o Sr. Jorge Marques. Assim é que as coisas estão certinhas. Entendido?