domingo, 14 de junho de 2009

"Domingo irei para as hortas"




"Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros.
[...] Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo."


Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa),
Anos 30.





"Retiro do Caliça, arredores de Benfica" (c. 1904),
Paulo Guedes, in Arquivo Municipal de Lisboa





Nas antigas hortas, o fado foi rei e senhor, ao lado do jogo do chinquilho, dos bailaricos e das pataniscas de bacalhau com salada - salada fresca de alface, donde os lisboetas receberam, para sempre, a sua alcunha de "alfacinhas".

Foi forte a tradição das hortas, para onde marchava a fidalguia, a burguesia e a ralé.
De Arroios a Sacavém, os retiros acompanhavam os viajantes, que em qualquer deles se podia deleitar com o peixe frito na frigideira, pastéis de bacalhau, sardinha assada, coelho guisado - e a imprescindível salada que se queria, como dizia o rifão, "temperada por um cego e mexida por um doido". Tudo, evidentemente, bem regado.

Ia-se para as hortas de tipóia ou de caleche - e a pé, quando o dinheiro não dava para mais, começando a temporada na segunda-feira de Pascoela.
Era o divertimento preferido dos lisboetas que, de certo, nunca pensaram em vê-las desaparecer um dia. (*)




"Grupo a almoçar no Retiro do Caliça, situado na Estrada dos Salgados, arredores de Benfica" (c. 1904),
Paulo Guedes, in Arquivo Municipal de Lisboa




Em Benfica, os retiros mais conhecidos eram o das Pedralvas e o do Charquinho.

Nos seus arredores, na Estrada dos Salgados (onde hoje se situa a Falagueira - Amadora), um de elevado renome era o Retiro do Caliça, lugar afamado de boa comida e vinho onde cantava o marialva e foram "descobertos" muitos grandes nomes do fado dessa época. (**)





"Retiro do Caliça. Em 2º plano vê-se o Cemitério de Benfica" (c. 1904),
Paulo Guedes, in Arquivo Municipal de Lisboa



A cidade foi crescendo, alargando-se, expropriavam-se terrenos para construção de novos bairros - e os prazeres bucólicos dos domingos campestres perderam-se para sempre. (**)







Bibliografia consultada para elaborar este post:

(*) VIEIRA, Alice; FERREIRA, António Pedro.
Esta Lisboa. Lisboa: Leya, 1993. 200 p.

(**) CARMO, José Pedro. "As hortas", In:
Evocações do passado: o fado, touradas, tipos populares das ruas, bailes campestres, o carnaval, as hortas, as feiras e teatros. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1943. - p. 115-138.

(**) LEAL, Gomes. "As hortas", In:
Histórias de Lisboa: antologia de textos sobre Lisboa / compil. Marina Tavares Dias. - 1ª ed. - Lisboa : Quimera, 2002. - p. 178-179

CONSIGLIERI, Carlos. "A cultura dos retiros". In: Olisipo : boletim do Grupo Amigos de Lisboa. - Lisboa. - S. 2, nº 3 (1996), p. 73-77









6 comentários:

Julio Amorim disse...

Este nome Caliça...está a dar voltas no cérebro, mas não sai cá para fora...algo em Benfica dos anos 60 !????

Alexa disse...

Seria algum restaurante que adveio deste antigo "Retiro do Caliça", Júlio?

Julio Amorim disse...

Hummm .....parece-me é que é algum café! Mas vou perguntar a quem possa saber.

Alexa disse...

Júlio: fico a aguardar mais informações sobre o "Caliça".
Um abraço

Anónimo disse...

O "Retiro do Caliça" era um restaurante/taberna onde se encontravam os "contra o regime" e tambem se cantava fado, o meu avô tocava guitarra e foi lá muitas vezes.

Alexa disse...

Muito obrigada pela explicação, caro Anónimo.
O seu avô também residia, então, em Benfica?