segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Classe de Ginástica Feminina da Fábrica Simões



O Jorge Resende foi a segunda pessoa que entrevistei (por escrito) para a rubrica "Gente de Benfica" neste blog.
A sua história de vida merece, sem dúvida alguma, ser lida na íntegra, pela excelente caracterização de um determinado tempo e das classes sociais que habitavam Benfica.

Desta vez, movido pelas recordações de uma foto onde figuram duas das suas tias, o Jorge Resende partilha connosco um importante texto sobre a condição feminina na freguesia de Benfica e em Portugal, noutros tempos.

Um importante testemunho a ser lido com muita atenção.




"Esta foto que lhe envio é de 1939 ou 1940. Foi tirada não sei por quem no enorme pátio interior da Fábrica Simões, com uma gerência composta por homens de excepção empresarial para aquela época, reconheci sempre, e nela figuram duas estimadas tias minhas, Maria de Lourdes Gomes Marques e Eufrazia da Conceição Gomes, a primeira falecida no Canadá em 2004 e a segunda habitando um Lar em Sintra.

Na foto há uma curiosidade: há uma menina com um pedaço do DN e lê-se 'A França e o REICH'. Foi no principio da tragédia. Aumentando muito a foto lê-se bem.


"Classe de Ginástica Feminina no pátio interior da Fábrica Simões" (1939 ou 1940)
Fotografia gentilmente cedida por Jorge Resende



Comovo-me sempre que olho para esta foto, pois vejo tantas crianças e tantas jovens como operárias daquela que foi a grande empregadora da zona de Benfica e arredores...
Quantos sonhos não alcançados? Que vidas, que caminhos?


A Fábrica Simões hoje em ruínas, pagava atempadamente os salários baixos da época, e, não seria honesto se omitisse, proporcionava aos seus operários actividades desportivas, cuidados de saúde, pois tinha um posto de enfermagem ao cuidado dum enfermeiro, Sr. Gabriel, aulas para iniciarem ou prosseguirem a
escolaridade obrigatória (4º ano), nos anos 50 do século passado tinham em funcionamento uma creche, havia uma classe de ginástica feminina e masculina e um grupo excursionista.




"Cartão do Grupo Excursionista da Fábrica Simões" (1942)
Imagem gentilmente cedida por Jorge Resende




Talvez nenhuma das crianças e jovens que a foto mostra, tenha chegado aos bancos de qualquer uma universidade (apenas chegaram àquela que a vida proporciona), e talvez nenhuma tivesse posto os pés em algum liceu do país.

Era assim naqueles tempos sombrios do Estado Novo. As mais desfavorecidas pela sorte, as filhas de um deus menor (se é que existem deuses...) tinham de se fazer depressa mulheres e fazer-se à vida, carregar com os filhos quantas vezes em berços, sobre a cabeça, e cumprir os horários nas fábricas em redor.


Mas também as menos atingidas pelas segregações não tinham os horizontes muito expandidos, pois havia que aprender lavores femininos, ajeitar os dedos pelas teclas de pianos com professores pagos à hora para lhes ministrarem conhecimentos de francês, geografia, português e matemática, noções de cozinha e corte-costura pois em breve iriam ter a enorme responsabilidade e não peso menor de serem mães, esposas devotadas sem direitos políticos, (não votavam), sem hipóteses de serem parte activa como Chefes de Família (papel destinado aos homens), tudo com a bênção divina dos diversos poderes dirigentes e religiosos deste país.


A maioria das Revoluções nascem, para se virarem contra tiranias, e na História Contemporânea deste País, tal aconteceu por vezes. Sempre se dividiram as opiniões sobre os benefícios que restaram depois das poeiras causadas por esses abanões na sociedade assentarem.

Da 1ª República, o forte impulso da rede de escolas públicas fazia crer que o acesso ao ensino seria uma verdade. Com a revolução de Maio e com o advento do Estado Novo muita coisa regrediu.


Mas para a mulher portuguesa, quer queiramos quer não, quer gostemos ou não da Revolução de Abril de 1974, as portas abriram-se e puderam sim fazer sonhar e cumprir sonhos.

Abriram-se as portas da Magistratura, das Forças Armadas e de Segurança, das Cátedras do Ensino Superior, da Investigação dos ofícios que se dizia serem apenas para homens.


No Estado Novo, as telefonistas, enfermeiras, assistentes de bordo (hospedeiras) e mulheres com outras profissões não podiam casar, e se o desejassem fazer teriam que abandonar as suas profissões.

Abril terminou com essa tirania, e, no caso das assistentes de bordo, regressaram de novo à Tap muitas que tiveram que se despedir porque ousaram decidir casar e terem a nobreza de serem mães.


As mulheres passaram a ocupar lugares de chefia, passaram a trabalhar ombro a ombro com homens nas suas mais diversas profissões, tais como condutoras de táxi, de transportes públicos, enfim, foi reposta a dignidade ou pelos menos alguma, no campo dos horizontes profissionais e sociais.


Encho-me de orgulho sempre que dou por mim a pensar nestas profundas mudanças. E tenho a certeza que mesmo aqueles que são contra os ventos que Abril trouxe, ficam felizes quando olham para uma filha ou neta ou parente e a sabem Investigadora, Juíza, Oficial ou Sargento das Forças Armadas, Oficial de Polícia ou simples agente das Forças de Segurança... Lá no seu íntimo felizes ficam, só que têm receio de mostrar a alegria contida!


E tudo isto por causa de fotografias de Benfica e do seu blog, Alexandra, mais uma vez....


Desejo ardentemente que qualquer homem ou mulher do meu país não seja mais impedido de realizar os seus sonhos ou até de sonhar.

Que quem discorde, não seja mais enviado para campos de S. Nicolau, do Tarrafal, também para os exílios, para Angola ou Moçambique como sucedeu no passado, que não sejam mais impedidos de ser cientistas, artistas, professores, padres ou bispos, enfim, que jamais alguém perca o seu ganha-pão só por terem tido a ousadia de discordarem, sendo para bem longe enviados e mandados encerrar.


Que a foto de grupo que anexo seja sempre um grito de alerta, Gedeão disse "O sonho comanda a vida", e aquelas crianças e jovens foram impedidas de sonhar. Certamente!


A criança que está ao cimo da foto de grupo em quarto lugar, transformou-se numa linda mulher, minha tia Lourdes, foi um ser maravilhoso, daqueles seres que quando partem jamais deles nos iremos esquecer.



"Lourdes" (1948)
Fotografia gentilmente cedida por Jorge Resende



Desculpe o tempo que lhe roubo com estes escritos nem sempre alegres, mas as memórias não se devem apagar. Nunca.


Cumprimentos,


Jorge Resende"






2 comentários:

Anónimo disse...

Muito comovente, mas o retrato perfeito duma geração!

Leonor Nunes

Anónimo disse...

Sr. Resende, gostei imenso de ler o seu comentário, principalmente no que diz respeito às portas que se abriram para as mulheres, depois do 25 de Abril de 1974.
Um grande obrigada e escreva sempre, por favor.
Dulce P.